UM RELATO DE EXPERIÊNCIA: AS LIÇÕES DO TERRA VISTA
“Ainda
somos sem-terra. “Mesmo tendo um assentamento com terras legalizadas pelo INCRA, ainda somos privados dos
latifúndios... O da educação, da saúde, tecnologia e tantos outros”. (VIEIRA, M. S.)
Brasil
tem ressoado bastante ultimamente, mas porque são diversos brasis. No mês de
julho estivemos viajando com a turma da universidade para uma aula a céu aberto
em um assentamento. Uma voz que não calava: O que deve ter de tão especial
nesse lugar, já que não vejo tantas pessoas interessadas em estar em um
assentamento sem-terra? Essa foi uma ótima pergunta, porque nesse percurso nos
deparamos com muitas respostas.
A
professora, a senhora Siomara Nery reservou o ônibus da UESC e combinou com a
turma que sairíamos às 7 horas e 30 minutos da instituição. Atrasamos a saída,
mas até ali tudo bem. Tínhamos alguns colegas que estavam nos esperando na cidade
de Itabuna, mas estávamos todos perdidos, então Magno desceu para procurá-los
na outra avenida e não os encontrou, eles estavam num ponto a nossa frente,
porque a má comunicação causou mais um atraso. Quando todos chegaram, foi uma
verdadeira festa, pois os nossos colegas têm
muita afinidade, principalmente quando o assunto é diversão.
O motorista Flávio foi totalmente cuidadoso e
educado conosco em toda viagem. Antes, porém nos informou que iriamos parar
numa mecânica para repor uma peça e que seria muito breve. Da maneira que ele
falou, assim foi. Depois de acomodados em nossos lugares, seguimos viagem e uma
parcela da turma estava a cantarolar, mas a professora selecionava o teor
musical por meio de intervenções amigáveis.
As
primeiras poltronas estavam com apenas uma pessoa. Do lado direito estava o
Magno, com o seu fone de ouvidos, escutando música e tentando estudar um pouco
umas apostilas de outras disciplinas. Do lado esquerdo, estava o Jonas, parecia
estar estudando o mesmo material que seu colega. Enquanto o resto da turma se dispersava
por diversas ações. A professora Siomara Nery estava fazendo uma leitura
bastante interessante em seu celular, pois ela estava muito concentrada. Camila
e Henric estavam totalmente entregues a algo que escutavam no celular,
compartilhando o fone, o que os aproximava ainda mais. Ali já estava uma lição
para a pergunta que foi feita logo no início. A Letícia estava bastante animada e
cantarolava sem parar, mas não era deixada sozinha nessa tarefa, pois o Igor
Dutra estava em êxtase e seguia a cantar sem reservas enquanto seu parceiro de
poltrona, o Thomaz colocava as batidas fazendo beat box.
Magno
sempre parava para escrever um pouco daquilo que observava. Já eram 9 horas e 27
minutos e ainda estávamos na estrada, quando de repente começou a garoar e
aquele clima ameno nos trouxe um sentimento de calmaria. Nesse momento, ele
guardou a sua caneta e o bloco de papel e voltou às suas leituras.
Chegamos
no assentamento até onde o nosso ônibus ia, pois havia um pouco de lama em
decorrências das chuvas. Paramos e nos reunimos para tirarmos umas fotografias,
nesse momento enxergamos outra lição, pois umas fotos nos uniram. Outra
pergunta: Será que o objetivo dessa vivência é nos humanizar, é nos fazer
pensar no coletivo? Dali em diante caminhamos um pouco, mas nada que
ultrapassasse 2 minutos até chegar ao nosso destino.
Fomos
recebidos por nossa colega Deisiane, que vive com seu marido e filho no
assentamento Terra Vista e desempenha um papel muito importante dentro dessa comunidade.
A historiadora Solange Brito nos encaminhou para uma sala onde ela iria falar
sobre a história do assentamento. Soubemos ali que eles vivem numa área de 913
hectares, 313 hectares de mata atlântica, 40 % preservada e 300 hectares de
cacau. O nosso colega João Pedro contribuiu com a Solange em sua fala, quando
se falou sobre a biodiversidade e a monocultura do eucalipto que está chegando
ao sul, essa foi uma intervenção inteligente. Então, tivemos mais uma lição, pois
ali o espaço começou a ser ocupado pelas vozes presentes, que até aquele
momento só ouviam com muita atenção.
No
meio desse diálogo tão interessante, um assentado de codinome Formiga se
pronunciou fazendo um adendo às falas da historiadora e falou sobre o plano
Safra. Havia um rapaz, o Scott, ele estava dando suporte técnico à apresentação
e esteve todo o tempo se mostrando satisfeito em estar contribuindo de alguma
maneira. Outra lição, pois estar à disposição do outro nesse processo colaborativo
não é tão simples.
Até
o momento, ainda não fazíamos ideia de quem era o Scott, aquele rapaz tímido
que estava ali passando os slides, mas ele tem uma das funções mais importantes
para que o lugar se movimente, pois, ele é responsável pela rádio e é um líder
da frente da juventude do assentamento. Ele falou brevemente sobre a rádio web
que o assentamento dispõe e o software livre que eles desenvolveram para
permitir que eles lancem e acessem os seus produtos em rede, mesmo offline. A
rádio do Terra Vista é ouvida em 9 países, comprovando que eles têm e usufruem
das mídias sociais para contarem suas histórias e se fortalecerem. Essa lição
mostrou que não precisa estar em evidência para ser, mas é necessário ser parte
de algo para ser.
Seguimos em direção ao Colégio Estadual Milton
Santos juntamente com a professora Siomara Nery. Estávamos conversando com a
vice-diretora Nayara Santana e ela nos falava
sobre o papel daquele colégio na região, o qual no período noturno chegava a
atender até 10 cidades da região no ensino técnico. Com uma educação
diferenciada, eles buscaram abrir as portas. A lição da acessibilidade, ao
conhecimento e a formação de técnicos.
Saímos do colégio às 12 horas e 18 minutos, já
estava garoando, mas todos estavam muito entusiasmados, então seguimos em
marcha. Chegamos em um determinado lugar onde havia um grande tronco e um cabo
de aço, por onde algumas pessoas atravessavam o rio, e nesse momento o Igor Dutra
partiu para mais uma aventura, e no seu embalo, mesmo temerosos muitos
estiveram do seu lado para viver aquela experiência. Mesmo sendo para posar para
mais uma fotografia, todos nos unimos, correndo o risco de cairmos no rio, nos
importando apenas com um registro que levaríamos conosco. As lições apreendidas
começaram a ficar cada vez mais claras, elas estavam a cada passo dado. Deisiane
aproveitou a oportunidade e nos falou sobre as matas ciliares, pela qual
estávamos acolhidos naquele momento. Ela disse que se criou um sistema de
reflorestamento pelos assentados e atualmente já tem 30 hectares de mata
ciliar, porque quando chegaram não tinha quase mata ciliar.
Ao
chegarmos aos jardins clonais, descobrimos mais uma grande lição a qual se
relaciona com a maneira como eles dividem os lotes, que é por força de trabalho.
Não adianta dar um lote enorme a quem produzirá pouco e vice-versa, então aqui
se otimiza a terra e o trabalho. Um pouco distante da turma, Magno aproveitava
para fazer novos amigos e dessa maneira conhecia ali o senhor Raimundo Figueiredo,
vulgo Solteiro, ele estava trabalhando na colheita de cacau ali perto. Era
perceptível o quão é desenvolvida a inteligência interrelacional dos
assentados. Ele se despediu daquele senhor com uma fotografia e se juntou ao
grupo. Dentro do jardim clonal a Deisiane falava sobre o cacau trinitário,
crioulo e Parazinho, envolvendo uma pesquisa de 10 anos, onde o cacau cabruca chega
a 18 variedades. Falava também sobre o clone (enxerto), 22 variações de cacau com
fatores de ph precisos e tudo isso com pesquisas e catálogos próprios. A lição
aqui foi, a produção de ciência e tecnologia para a comunidade, pois tudo é
realizado em coletivo e todos aprendem o processo, onde a educação não se
restringe à escola sem a vivência e aprendizagem daquilo que sua comunidade ou
família produza. Essa foi outra lição muito preciosa, pois ela fez alguns
daqueles estudantes universitários que em sua maioria estão longe de casa, viajar
no tempo e lembrar de muitas coisas boas... Nostalgia.
Deisiane
falou que o chocolate, que na realidade é a amêndoa do fruto do cacau, ele se
adapta ao clima e isso influência no paladar, fazendo com que a pessoa saboreei
a cultura do lugar onde se é produzido, assim como os vinhos mundialmente conhecidos.
O chocolate do Terra Vista é produzido por jovens, e essa região do
assentamento é privilegiada para produzir chocolate, porque ele tem o IG –
Indicador Geográfico (fruto de uma indicação geográfica), provando que este é
um dos melhores lugares para produção de chocolate no mundo. As explicações
foram ficando mais claras e agora começamos a entender o valor da degustação. A
lição é, perceber que tudo que consumimos tem uma história e que a levamos
conosco.
Retornamos
para o lugar onde iríamos almoçar às 14 horas e 40 minutos, todos mostravam-se
bastante tranquilos, ainda que houvesse alguém com muita fome, acredito. Todos
sentaram no seu lugar e foram comer uma comida para lá de especial preparada
pela mãe da Maria Alice, uma das colegas da turma. Quando terminamos de
almoçar, chegou um senhor com um saco de cacau para a turma, isso aí já eram 15
horas 20 minutos e nós ainda tínhamos uma árvore para plantar e o nosso tempo
corria como atletas olímpicos. A lição aqui foi olhar para a família
do outro como uma extensão da nossa, sabendo que podemos nos ajudar e cuidar
uns dos outros.
Seguimos
para a rádio e nos encontramos com Scott e Bob, os coordenadores de comunicação
e juventude, nos informaram que a rádio tem um alcance de 7 a 10 km em seu raio
e que os computadores chegaram lá para 2009. A Rádio Aliança Educadora, 89.5 FM,
funciona como web rádio e o tem o seu site, aliançaeducadorafm.mocambos.net com
programas musicais e playlist, mas ainda carece de uma programação. Bob falou
sobre tomar por assalto, pois não se receberam concessão até o momento para o
funcionamento da rádio, mas eles mantem uma pequena rede de rádios e mais 3
parceiras.
Aquele
é realmente um espaço de produção de ciência e tecnologias, pois eles criaram
um aplicativo da rádio para android, além criar uma biblioteca digital, a
baobaxia e as suas mucoas (os frutos do baobá). A ideia parte de baobá (árvore
da ancestralidade) e galáxia (universo de possibilidade). A mucoa do Terra
Vista é a CABRUCA e está parada no atual momento (bug no sistema), mas o
domínio deles é o seguinte: baobaxia.mocambos.net. A lição foi entender que
todos estamos conectados e só avançamos quando nos damos conta disso.
Depois
de plantarmos nossas árvores com os colegas do curso de comunicação, alguns
voltaram com umas mudas de árvores do viveiro desta comunidade, sem contar com
os lindos cacaus, verdadeiros símbolos de prosperidade dessa comunidade. Na
despedida, fomos presenteados com um delicioso açaí, produzido pelos próprios
assentados. Levamos conosco o sabor daquele dia, pois degustamos mais que um
alimento ali produzido, degustamos memórias que estarão eternizados pela experiência
de um dia que disse tudo sem desejar falar nada, apenas um dia. Agora
suspiramos fundo e sentimos que ali ficou um pouco de nós, e veio em nossas
mochilas mais bagagem do que levamos (risos), porque além do cacau e do açaí,
vieram as suas memórias e histórias que nos tomaram para si em poucas horas de
vivência e troca. Essa foi a mais nobre lição de todas.
Às
16 horas 40 minutos, estávamos no ônibus retornando para casa e o silêncio que
tomou conta não estava apenas relacionado ao cansaço, por ser uma rotina a qual
não estamos acostumados, mas denunciava que existia um momento de reflexão. A
professora Siomara retorna à sua leitura em seu celular e outros se silenciam
para voltarem aos textos que analisava no início da viagem. Alguns mudaram de
lugar, mas agora todos se envolviam de maneira mais intimista e contida, alguns
se lançaram ao sono e o ambiente foi ficando bucólico, como num fim de uma
grande orquestra, onde o som vai baixando gradativamente... E fim. Ainda somos
sem-terra? Sim! Existem ainda muitos latifúndios que nos sãos negados.
TURMA
DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – RÁDIO E TV, 2017.1
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